E não foram somente imprensa e público que viram o potencial do diretor e roteirista inglês: a Annapurna Interactive, publicadora de What Remains of Edith Finch e Florence, demonstrou interesse e abraçou o projeto desde o início. Munido de sua experiência passada com jogos AAA e de muita liberdade artística, Sam Barlow encontrou em Telling Lies a oportunidade de fazer o jogador observar, anotar e tomar decisões, de forma autônoma, a fim de encontrar verdades, contradições e nuances em uma coleção de registros pessoais em vídeo.

Detective Starter Pack

Telling Lies nos coloca, literalmente, no papel de uma investigadora em frente a um computador carregado de informações surrupiadas da NSA (agência nacional americana de segurança). Contando com um mecanismo avançado de busca e indexação de palavras para auxiliar na recuperação e visualização de vídeos confiscados pela NSA, seu papel é investigar vídeos e solucionar uma história de traição, corrupção, conspiração e mentiras. Se você se aventurou pelo misterioso monólogo investigativo de Her Story, é fácil entender a origem da interface e do modus operandi desse novo título. Diferentemente do primeiro, Telling Lies não é um conjunto de depoimentos realizadas frente a uma autoridade policial — nem tampouco exige que sua imaginação extrapole as respostas gravadas em formato de vídeos para tentar adivinhar quais foram as perguntas e para onde poderia se conduzir a investigação. Obtidas no formato de videoconferências, as conversas gravadas ao longo de dois anos sempre chegam ao jogador de forma assimétrica: você literalmente escuta apenas um dos lados da cena, que pode se tratar apenas de uma troca de palavras descompromissada ou até de um extenso conto de fadas. Apenas os cinco primeiros resultados (em ordem cronológica) contendo a palavra pesquisada são disponibilizados para o jogador. Cada vídeo assistido é marcado como visualizado — podendo ser adicionado a uma seleção de favoritos — e começa a ser reproduzidos a partir da cena envolvendo a palavra pesquisada.  Os registros devem ser rebobinados manualmente caso você queira assisti-los desde o início — o que é até interessante para aqueles que não querem ouvir todas as conversas, mas precisam estar a par dos acontecimentos.

Luz, câmera, (re)ação!

Como vocês provavelmente já notaram pela descrição e imagens, Telling Lies é uma experiência FMV (Full Motion Video). Todas as cenas que compõem sua narrativa não-linear foram filmadas com atores reais, incluindo alguns nomes um tanto conhecidos da sétima arte. A atriz Angela Sarafyan, por exemplo, interpretou a personagem Clementine Pennyfeather na série da HBO Westworld. As experiências com os mundos da TV e cinema presentes nos currículos dos quatro principais atores foram essenciais para que o jogo tivesse o impacto narrativo proposto pelo diretor e roteirista. À medida que descobrimos mais videogames e começamos a conectá-los aos seus respectivos registros paralelos, percebemos quanto atuação e direção durante cenas longas corroboram com a aproximação entre o mundo em que vivemos e o universo do jogo. A fim de não estragar a experiência contando sobre o grau de proximidade entre os protagonistas, não vou comentar sobre os momentos que mais me marcaram, mas quero deixar claro um ponto: o nome do jogo faz jus ao desenvolvimento dos personagens e às soluções da trama. Muitas gravações ocorrem de forma natural, como se fossem conversas despretensiosas sobre o passar dos dias, enquanto outras passam a sensação de estarem acontecendo pois uma das partes envolvidas tinha interesse no material gravado.

A exposição em Telling Lies

Há diversos tipos e posições de câmeras gravando a privacidade dos personagens, sendo grande parte dos vídeos composta de conversas por vídeo via dispositivos móveis (como celulares, tablets e notebooks). Algumas cenas, porém, parecem ser filmadas de pontos mais distantes e escondidos, fazendo surgir a dúvida sobre uma potencial instância de espionagem ou de um personagem exercendo funções duplas. Há cenas que emocionam, que nos deixam tensos, curiosos e até aquelas com uma atuação longa e sem cortes, quase como em uma peça de teatro. Telling Lies é um jogo que realça momentos incômodos da vida dos personagens, mas de uma maneira interessante e instigante. Algumas cenas invadem a intimidade de casais, famílias ou grupos de pessoas, expondo os desejos, conflitos e sentimentos dos envolvidos. A todo momento, ele aparenta entregar uma mensagem sobre causas e consequências de nossas palavras e ações (mesmo no âmbito privado) quando se tratando de comunicação digital. Apesar das inúmeras qualidades, faltam recursos de acessibilidade e qualidade de vida no jogo. A função de rebobinar/acelerar os registros até permite a escolhas de três velocidades, mas um botão para voltar para o início do vídeo automaticamente cairia bem em uma era digital onde VHS e fitas-cassete não mais fazem parte da vida cotidiana. Ao contrário de seu antecessor, Telling Lies conta com diversas opções de idiomas para legendas — inclusive português brasileiro. O único problema, porém, é que o principal elemento de jogabilidade são as palavras encontradas nos depoimentos. Em alguns casos isolados, separei palavras faladas em alto e bom tom nos depoimentos, mas não consegui encontrar novamente os vídeos quando as procurava na barra de busca (mesmo jogando no idioma original). Minha impressão foi que, para se adequar à variedade linguística, o algoritmo teve de ser simplificado. Mesmo não sendo tão inovador e debatível quanto Her Story, o título certamente conquista um espaço importante no (já não tão popular) gênero dos Adventures. Se você gosta de investigar (lê-se “curiar”, fofocar) a vida alheia e curte jogar em PC/iOS, Telling Lies é a escolha certa para um ano cheio de mentiras como 2019.

Review  Telling Lies e o papel do jogador como detetive em 2019 - 65