Prova da popularidade do modelo interativo é que até a Netflix surfou nessa onda, com a produção do filme especial de Black Mirror Bandersnatch, em 2018. Com este sendo o exemplo mais popular, curiosamente ele não foi o primeiro do serviço. Em julho do mesmo ano, a Netflix “assumiu” a inspiração no modelo de jogos e, em parceria com a Telltale, criou uma série interativa de Minecraft. Entre os lançamentos dos capítulos, a Telltale faliu – mas, por sorte, os episódios não desapareceram. Precisamente entre estes dois momentos-chave (2012 e 2018), a desenvolvedora Dontnod Entertainment lançou o game que alavancou o sucesso do estúdio e tornou-os também conhecidos pelo gênero. Life Is Strange foi premiado e adorado pela indústria. Formador de um público fiel, que sabe reconhecer o poder de uma história emocionante e envolvente, ele resultou na concepção de uma nova fanbase ao estúdio, lá em 2015. Pouco surpreende saber que há expectativas criadas ao falarmos sobre o game em questão deste review, Tell Me Why. Publicado pelo Xbox Game Studios há poucos meses, ele integra o Xbox Game Pass e foi lançado em três episódios para Xbox e PC. O jogo conta uma lindíssima história sobre irmãos gêmeos, de uma forma que só a mistura entre “game episódico” e “filme interativo” sabe transmitir. A seguir, te conto como foi minha experiência acompanhando esta obra de arte. Todas as imagens a seguir foram capturadas por mim no modo de screenshot padrão do Xbox, sem edições.

História

Irmãos gêmeos, Tyler e Alyson não se veem desde a morte da mãe, quando ainda eram crianças. Já adultos, eles se reencontram e descobrem que os acontecimentos daquela época seriam diferentes da maneira como se lembram. Esta jornada de volta ao passado, tanto física como mentalmente, irá revelar detalhes impactantes e moldar a narrativa, acompanhada e ditada pelo jogador. Dividido em três episódios, liberados entre agosto e setembro de 2020, o game se baseia em um drama sutil, sem precisar criar ganchos que lembrem o tratamento de episódios de séries – ou jogos episódicos que te fazem “precisar” saber o desfecho da história. Pelo contrário, a “fórmula Life Is Strange” é desconstruída por completo e, em Tell Me Why, há a genuína curiosidade para prosseguir à conclusão do game. Ao visitar novos locais, gradualmente a jornada se dissolve em conflitos e reforça relacionamentos. O flashback no início, da mesma maneira que em jogos e filmes que aplicam esta estratégia de narrativa, te deixa o tempo inteiro na antecipação, colocando a pulga atrás da orelha até que suas dúvidas sejam sanadas. Hoje, quem adquirir o jogo pode terminar cada ato em cerca de três horas. Por conta disso, estamos falando de uma jogatina digna de maratona de final de semana, com o total que beira as 10 horas, do começo ao fim. O ritmo das descobertas e a jogabilidade intuitiva de Tell Me Why não te deixam pensar no relógio. São horas bem aproveitadas, entre risos e lágrimas, o ideal para quem busca por um título episódico/interativo. Pessoalmente, minha recomendação do game é baseada neste pilar da história. Então, assim como eu aproveitei Tell Me Why às cegas, tratando-se de enredo, afirmo aqui: se você tem o Game Pass e quer ter a mesma surpresa, jogue-o agora. Porém, em um review como este, vejo a necessidade de entrar em detalhes sobre as características dos personagens e, mesmo que você faça essa descoberta no início do jogo, vale a pena deixar Tell Me Why te contar no ritmo certo. Aos que ficam, segue a sinopse – sem grandes spoilers, claro. A partir de certo trecho da história, entendemos o relacionamento entre os irmãos e vemos a ideia da “revelação” ser amadurecida: Tyler é um protagonista transsexual. Em nenhum momento os personagens ou o jogo em si (legendas sempre identificam-no como “Tyler criança”) trazem o nome dele antes da transição. Temos zero clichês e, ao que fica claro pelos membros LGBTQ+ da equipe de criação, tudo é contado em tom respeitoso. A escrita é ótima, com opções de diálogos que ditam o quão agressivo ou compreensivo você será ao lidar com intolerantes. Tell Me Why então é um dos pouquíssimos em games (mesmo atuais), ainda mais se tratando de uma indústria polarizadora de opiniões, que traz esta escolha, acompanhada de uma representação positiva. Em geral, temos uma história bem construída e bem dividida, visto que os três atos funcionam como um filme, com arcos fechados (em cada capítulo) e uma aventura maior (no jogo como um todo).

Jogabilidade

Sem espaço para reinvenção, Tell Me Why agrada nos controles básicos. Você sempre se depara com momentos onde a exploração do cenário é obrigatória, seguido por diálogos com outros personagens e alguns quebra-cabeças a resolver. Uma dinâmica única para você, que ora controla Tyler, ora Alyson, é a “conversa” via transmissão de pensamento. Quando encontrar um objeto ou estiver em local nostálgico, ambos têm a habilidade de se concentrar para revisitar suas memórias. Em certos trechos, de maneira dosada, você pode escolher qual “versão” das memórias você acreditará e isso terá impacto direto na sua jogatina. Em particular, há uma conquista do jogo onde você precisa formar uma forte conexão com sua irmã e outra onde precisa existir a falta dela. Por culpa destes extremos, quem tiver vontade de coletar todas as conquistas precisa terminar Tell Me Why duas vezes. Falando da exploração em si, Tell Me Why merece um ponto positivo por seu poder de intuição – resultado de ótimo design. Sabemos que simular point and click ou te forçar a passar por uma lista de opções (somente com as setas direcionais) não torna nenhuma gameplay fluida. Por sorte, isso não acontece no jogo, onde a mira da câmera em terceira pessoa dita a área de interesse que mais estiver próxima do personagem. Mesmo que eu tenha migrado para outros jogos desde o primeiro capítulo do jogo, bastou poucos segundos até eu reaprender os comandos e as formas de explorar os cenários. Neste momento, percebi o quanto os controles simplificados, aliados a prompts na tela (como “segure A para interagir”), compõem uma dinamicidade leve. Em nenhum momento precisei me “desprender” da história para pensar em qual botão pressionar, e essa seria mais uma prova de atenção aos controles, coisa que voa abaixo do radar de muitos jogadores. Nos momentos onde memórias podem acontecer, o controle vibra e há indicações visuais por meio de flashes luminosos. O fator sobrenatural não é exagerado, constituindo uma ambiguidade recorrente (minha e de quem jogou outros games da empresa) se considerarmos que a franquia Life Is Strange é baseada em uma jogabilidade com manipulação de tempo e telecinese. Quem gosta de uma camada a mais na jogabilidade pode ficar atento aos colecionáveis do jogo: bonecos espalhados por todos os locais (e capítulos). Ainda há uma certa conquista pessoal de explorar cada detalhe e ler cada item. Em muitas situações, a exploração é opcional, mas aqueles que pegarem o costume terão maior facilidade em se conectar à irmã – e manter um forte laço com ela é uma das conquistas de Tell Me Why. Para jogadores que quiserem comparar sua própria moral à comunidade que também jogou Tell Me Why, ele te poupa da tarefa de entrar em fóruns de discussões e procurar pelos comentários de outros interessados: assim que um capítulo termina, você tem uma sequência de momentos-chave, seguidos pela porcentagem exata de quem fez cada escolha. Ainda em termos de jogabilidade, saiba que o jogo está disponível também em português (legendas/texto e dublagem), mas optei por jogar a história inteira no original em inglês para uma experiência um pouco mais refinada. Posteriormente, iniciei o primeiro capítulo dublado e afirmo que o trabalho da equipe brasileira foi ótimo, logo, quem não tiver domínio da língua estrangeira pode aproveitar sem problemas.

Visual e atmosfera

À parte da história, o segundo destaque mais palpável ao falarmos sobre um game de narrativa episódica é a arte. Sem defeitos, Tell Me Why traz uma mescla de traços feitos à mão com sombras e texturas realistas. Ainda mais no Xbox Series X, o jogo tem uma atenção aos mínimos detalhes que é necessária em jogos de exploração. Com isso, você não entende só o personagem que controla, mas também tem “de tabela” seu relacionamento com outras pessoas e sua visão de mundo. Aqui vemos que a engine (Unreal Engine 4) e a direção artística do jogo funcionam como fortes parceiros, em especial para mostrar objetos interagíveis. Documentos escritos à mão estão por todo o lugar, ponto que reflete boa escrita e composição do mundo, além de te trazer mais para perto da caligrafia “real” daqueles personagens. Quando pensamos em cenário (e na importância dele para te guiar pela história), temos a casa dos irmãos como o primeiro grande exemplo da direção de fotografia para contar uma história. Ao ar livre, temos diálogos e situações libertadoras, enquanto locais fechados resultam em introspecção, ao revisitar o passado. Por se passar em uma parte rural do Alaska (EUA), no game há pinturas, objetos e personagens do povo tlingit, que constitui uma comunidade indígena. Representatividade, então, é com certeza o grande destaque do jogo se pensarmos em construção de universo. A imersão vem em paralelo a isso, nos ambientes quentes e frios e em diversas linhas temporais revisitadas pelos irmãos. Com certeza os movimentos corporais e a voz dos protagonistas ajuda a vendê-los como pessoas mais palpáveis, mas as animações faciais seguem a mesma movimentação “truncada” de Life Is Strange – relembrando, um game de 2015. Raras vezes há glitches visuais, como a física da roupa e dos cabelos se movimentarem de maneira inesperada, e isso não desprende da atmosfera mesmo que você note.

Conclusão

Tell Me Why tem um charme único que já é marca registrada dos games da Dontnod. É feito com carinho, respeito e responsabilidade por criadores em prol de contar esta história sobre conflitos familiares. Ele ultrapassa o clichê de ser “só mais um” filme interativo, pois a jornada pede atenção e exploração de mundo como poucos do gênero fazem. E é incrível como o título sequer foi vendido com o conceito de “escolha sua jornada” e, mesmo assim, fãs de jogos da Telltale criticaram duramente Tell Me Why por sua suposta falta de liberdade. De antemão, vale alertar que suas escolhas afetam poucos acontecimentos até o final. Por conta disso, todos terão a mesma conclusão – que é excelente. Contando com mensagens boas, uma abordagem respeitosa ao público LGBTQ+ e também uma construção única de personagem, a qualidade da narrativa faz com que ele crie essa abertura para atrair fãs que gostem do estilo de jogo, não somente dos temas. Enquanto a realidade poderia ser 100% baseada em pink money, por puro discurso social que atraia em exclusivo a comunidade, as intenções da Dontnod Entertainment são boas e, felizmente, a empresa passa longe deste viés pessimista. Tell Me Why está disponível somente em versão digital com todos os três capítulos, para PC via Windows (R$169,95) e Steam (R$169), e Xbox One/Series de graça pelo Game Pass. Vale lembrar que a assinatura do Game Pass ainda está por R$5 reais por três meses até o momento da publicação deste review. E aí, ficou interessado no game? Conte para a gente nos comentários abaixo!

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