Milhares de alunos brasileiros frequentam a escola sem saber que cada escolha online, uso de aplicativo, envio de mensagem pode estar sob monitoramento. Os games e aplicativos lúdicos de tecnologia educacional contribuem com dados que formam um perfil do estudante. O assédio de empresas de marketing a crianças e adolescentes vai desde anúncios no celular a mensagens personalizadas e infringe a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). O acesso a essas ferramentas é determinado por quem deveria proteger os alunos, o governo, através de seus departamentos de educação. “Há um perigo a mais quando falamos de espaços públicos e a coleta de dados com esses sistemas, passa a ser algo massivo, então não se está falando de problemas individuais mas de grandes plataformas de educação, com públicos de milhares ou milhões de pessoas, dados extremamente valiosos”, afirma Tel Amiel, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e Coordenador da Cátedra UNESCO de EaD da UnB. O relatório “Students, not Products” (“Estudantes, não Produtos”) da organização de defesa de direitos humanos internacional Human Rights Watch repercutiu em 2022 no Brasil apontando plataformas de tecnologia que lucram com dados dos alunos. Ferramentas que foram compradas e são utilizadas em escolas públicas brasileiras pelo governo. O estudo apontou as plataformas Centro de Mídias da Educação de São Paulo, da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo; Estude em Casa, da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais; Descomplica, Dragon Learn, Escola Mais, Explicaê, Manga High, Stoodi e Revista Enem, recursos utilizados por escolas públicas pela recomendação específica de gestores e professores. Dois outros estudos do CGI (Comitê Gestor da Internet do Brasil), lançados em setembro e novembro de 2022, trazem um quadro ainda mais amplo da vigilância aos estudantes. A plataformização das escolas, um movimento iniciado ainda durante a pandemia, é o nome dado à tendência das escolas para cada vez mais buscar plataformas das Big Techs como Google, Apple e de empresas de edtech (educação e tecnologia) para colocar todas lições, atividades e muito mais dos alunos.

Um dos maiores exemplos dessa tendência fez parte da campanha eleitoral de 2022 para presidente. O uso do Grapho Game, um game educativo para alfabetização, foi apresentado como solução para a educação brasileira, o que gerou várias reações. Para esta reportagem, contatamos especialistas e empresas relacionadas ao mercado de edtech para entender um pouco mais sobre a plataformização do ensino, além de utilizar a LAI (Lei de Acesso a Informação) para pesquisas específicas.

Grapho Game e a plataformização com o Google

O Grapho Game é um jogo criado na Finlândia no contexto de uma pesquisa sobre neurolinguística. “Foi criado para crianças disléxicas e não com a finalidade de alfabetização geral”, conta Nelson Pretto, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Adaptado para o Brasil pela PUC-RS, foi apresentado ao MEC pelo então professor do InsCer (Instituto do Cérebro), Augusto Buchweitz, especialista em desenvolvimento infantil e conselheiro do CNE (Conselho Nacional de Educação do MEC). Atualmente, Buchweitz é professor em psicologia da Universidade de Connecticut. O uso do Grapho Game exige o download do arquivo de instalação. Uma vez instalado em celulares Android, iOS ou PC com Windows, ele não necessita cadastro. “Isto é muito importante pois não coleta dados dos alunos”, afirma sobre este ponto Aline Fay, professora da Escola de Humanidades da PUCRS, neurolinguista e pesquisadora do InsCer. No entanto, considerando que 80,5% do mercado de celulares no Brasil é Android (StatCounter), a maioria das instalações utiliza conta Google. Este não é, entretanto, o caminho adotado pela própria PUC-RS. “Utilizamos tablets Android nas escolas em que pesquisamos, com contas que não identificam os alunos e que são trazidos de volta para a universidade e os dados coletados são retirados quando necessário”, conta Aline Fay. Para o uso do Grapho Game no Brasil, o MEC informou que foram gastos, no decorrer dos anos de 2020 a 2022, R$ 1.746.505,69 para as campanhas publicitárias de utilidade pública do aplicativo. O valor pago à PUC-RS para disponibilização do aplicativo no ano de 2021, foi de R$ 100.500,00; e no ano de 2022, R$ 174.000,00. Os dados foram obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação). Em outro pedido sobre as compras do MEC no governo do ex-ministro Milton Ribeiro, há um pagamento mensal à União Brasileira de Educação, relacionado ao Grapho Game. O cuidado dos pesquisadores da PUC-RS não se traduziu no uso do aplicativo em larga escala de vídeo games pelo MEC. No debate presidencial das eleições 2022, Jair Bolsonaro chegou a afirmar que o aplicativo poderia alfabetizar uma criança sem o professor em tempo recorde de seis meses. Já para a professora Aline Fay, “é importante contar com o professor que é o parceiro do aluno na jornada de aprendizado”. Priscila Cruz, do Todos pela Educação, foi incisiva quanto ao uso livre do aplicativo para alfabetização: “é um caminho equivocado, não-científico“.

Três países da União Europeia já restringiram o uso de ferramentas de Big Techs em sala de aula. A França, através de seu Ministério da Educação, recomendou em novembro que o Google Workspace e mesmo as ferramentas do Microsoft Office 365 gratuitas não devem ser usados nas escolas. A preocupação é com a conformidade com a GDPR (Lei Geral de Proteção de Dados) europeia. A Alemanha também vetou o uso do Microsoft Office 365 em setembro com as mesmas alegações. A Dinamarca, em julho, já havia proibido o uso de todos os produtos Google, como Workspace e Chromebooks, nas escolas.

Stoodi e o uso de keyloggers e a customização básica do Centro de Mídias

O maior problema do uso dos games e plataformas para educação está na incapacidade de governos e professores entenderem exatamente o que pode acontecer com a coleta de dados dos alunos. “Esses riscos vão de violação da privacidade dos alunos, professores e até dos familiares, que ficam expostos quando as câmeras das videoaulas capturam a privacidade das pessoas, dentro de casa. Passam por questões éticas importantes até a venda e cessão de dados destas pessoas a terceiros com finalidades comerciais e até de vigilância arbitrária“, afirmou Marielza Oliveira da UNESCO no lançamento do primeiro estudo do CGI. No caso específico do Stoodi, o relatório da Human Rights Watch apontou o uso de um keylogger (registrador de teclas), uma tecnologia que grava todos os dados digitados pelo usuário no celular e encaminha para o portal de uma empresa de publicidade online. Priscila Gonsales, do Instituto Educadigital, coordenadora dos estudos do CGI, indica também a baixa customização do Centro de Mídias de São Paulo. “O material é de uma empresa IPTV, através de sua plataforma IPTV School, e apenas o logo foi modificado para o do Centro de Mídias”, afirma a pesquisadora. O representante do MEC presente do debate de lançamento do estudo, André Castro, reconhece que as soluções das Big Techs são onipresentes no mercado de educação e tecnologia, “a concorrência do mercado com o Estado é desleal”, afirma. “O MEC hoje pensa uma estratégia de educação digital para dialogar com diversos atores”, completa. Quando se trata de produtos educativos para crianças e adolescente, o MEC está ciente da necessidade de mais cuidados, “sobre a questão da barra mais alta para este público, em tese a LGPD já trata esses dados de forma diferenciada, na base de como esses usuários vão interagir com a solução”, indica Castro. “A criança não tem a percepção ou o discernimento que seu dado está sendo usado”, completa o especialista. “Quando você tem soluções que vão interagir com crianças, tem que ter um trabalho diferenciado na interface”, finaliza.

Cuidados necessários desde o desenvolvimento à escolha de games educativos

A escolha dos games educativos deve ser cercada de cuidados, desde o desenvolvimento à sua escolha, “é preciso conhecê-los, e como qualquer aplicativo, saber o que está por trás deles, quais dados coletam”, afirma o professor e desenvolvedor Francisco Tupy. Autor do aplicativo “Norte para a Ciência”, o professor indica os games como caminho para potencializar a educação, especialmente com a chegada do 5G. “No Brasil, esbarramos na formação dos professores para usar games e os gestores das escolas também têm que saber o que eles são, têm que ler sobre o assunto, assim como os pais”, afirma Tupy. Como desenvolvedor, Tupy afirma que é preciso ter uma visão ética na construção do game, “fiz um produto destinado a alunos que querem participar de projetos científicos e foi importante construir de modo a não coletar dados dos alunos”. Critérios éticos estão no alto da lista de escolha de organizações, conforme explica Ana Paula Gaspar, especialista em tecnologia educacional e que já participou de processos de avaliação de aplicativos para o CIEB (Centro de Inovação para a Educação Brasileira), uma associação sem fins lucrativos que atua com a educação pública brasileira. O projeto, realizado em 2019, visava orientar gestores de secretarias para boas compras e tinha parceria com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) para estabelecer critérios de avaliação. “De mais de 100 edtechs que se inscreveram na plataforma do CIEB, apenas 9 passaram pelo crivo dos avaliadores”, conta Gaspar. “A segurança dos dados dos estudantes era um dos critérios”, relembra. Das 9 aprovadas, apenas uma era uma startup na época. “A preocupação com dados é uma exigência legal e muitas startups edtechs nascem sem pensar nisso”, indica a especialista. “Gestores e professores devem procurar referências técnicas para embasar sua escolha de tecnologias para a sala de aula, há diversas publicações que orientam nesse sentido”, complementa. “É urgente falar de LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e games na escola, pois a escola não está apartada da sociedade, o avanço dos games de maneira mais coerente já existe e as redes e os educadores precisam se comprometer, pensar no seu papel nesse processo”, afirma Gabriel Maia Salgado, coordenador de projetos do Instituto Alana. A organização mapeou o crescimento do uso da tecnologia na escola durante a pandemia. “É necessário um olhar não punitivista aos games, muito pelo contrário. Queremos identificar, como sociedade, como podemos estar comprometidos para o melhor uso possível”, indica Salgado. “Há um ponto central: é preciso um compromisso do poder público para ser promotor e regulador da utilização dos recursos digitais com famílias e empresas, além disso, é possível olhar para a criação de games que promovam autonomia, inclusive incentivar crianças e adolescentes a criar seus próprios games”, explica. Pensar em games e plataformas lúdicas como instrumentos de coletas é algo totalmente contrário à própria natureza dos games, conforme a professora doutora em design e jogos educativos, Paula Carolei, explica. “É importante pensar para que usamos os dados, se são usados apenas para ficar controlando o aluno, isto é muito ruim”, afirma. “O jogo é para errar, experimentar, não para conter erros ou comparar resultados, os dados devem voltar para o aluno pois assim ele melhora suas escolhas e estratégias”, complementa. “Temos que superar essa lógica, que faz dos games algo muito reativo como no Grapho Game, e há até games na escola pública que fazem com que as pessoas vejam anúncios, até de governos, para ganhar prêmios”, protesta. No BIG Festival (Games Independentes Brasileiros), existe a busca de representantes de municípios e estados que querem aprender mais sobre educação e games, afirma o professor Jean Rafael Tomceac, que participa também da organização do espaço específico no evento há 5 anos. “Inclusive, uma frente parlamentar na ALESP em 2021 discutiu o tema, assim como Grapho Game foi discutido em audiência pública, e foi apontado tanto pelos professores como desenvolvedores presentes, que o game não tinha nenhum contexto para o Brasil”, aponta Tomceac. Um mapeamento de vagas de edtechs (empresas de educação e tecnologia) mostrou que as empresas não estão prontas para contratar profissionais que trabalhem com dados e educação. Caio Dib, consultor de tecnologia educacional, divulga periodicamente vagas no Linkedin (já chegou a mais de 10.000) e realizou um mapeamento com mais de 180 vagas e profissionais disponíveis em todo o Brasil. Apenas uma das vagas era relacionada a dados e privacidade e tratava-se de uma vaga de coordenação de cursos. “O game em educação também sempre teve o desafio de ser algo legal, a maioria é bem chato”, comenta Caio. “Isto faz com que muitas escolas e professores optem por games comerciais, como o Minecraft”, indica. “Temos diversas tecnologias que não refletimos sobre privacidade e usamos sempre na escola, como o WhatsApp, é preciso ter debates sobre isso”, complementa. “Precisamos ter uma mudança mesmo é de atitude em relação aos jogos”, afirma a professora Paula Carolei. “O que tem sido vendido como game tá muito mais perto de testes interativos e avaliações, quando nos jogos comerciais há muito mais possibilidades”, explica. “Explorar um tema, desvendar pistas, pode ser um ótimo game educativo e há várias maneiras de criar algo assim”, aponta a professora. Nenhuma dessas maneiras, entretanto, deve envolver a coleta de dados excessiva. “Tanto pela idade do público, que a LGPD já determina que não deve ser alvo, como a falta de permissão para coletas e possibilidade de optar não participar, é um hábito muito ruim que deve ser abandonado”, afirma Tel Amiel, professor da UnB. Fontes:

Relatório Students, not Products Estudo Educação em um cenário de plataformização e de economia dos dados: problemas e conceitos Estudo Educação em um cenário de plataformização e de economia de dados: parcerias e assimetrias

*Esta pauta foi contemplada com o 4º Edital de Jornalismo de Educação, iniciativa da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) em parceria com o Itaú Social.

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